lá pelos idos da virada do último milênio havia um bar na lapa paulistana comandado por uma cozinheira carioca e um boêmio santista que preparava caipirinhas que marcaram época na cidade
o casal de donos se tornou tão próximo que eu passava mais tempo no bar que em minha própria casa, isso quando não estávamos viajando ou tomando nos lares de amigos em comum. foi a época em que mais bebi uísque na vida
comíamos muito, mas muito bem, das mais diversas formas possíveis. mas é natural que uma coisa ou outra chamasse mais a atenção
foi num bar no jardim botânico que não sei se ainda existe que a amiga cozinheira carioca aprendeu a preparar um improvável pastel de gorgonzola com couve. nunca provei o original, mas o dela era bem bom. tanto que, com sua permissão, o reproduzia com sucesso no meu último restaurante
em tempos de tanto roubo de propriedade intelectual – aqui mesmo na internet, terra de ninguém, sou vítima dessa caralha quase que diariamente – é importante que além da permissão se dê o devido crédito das coisa tudo sempre que pudermos. o nome da amiga é glorinha guimarães, o saudoso bar é o lapinha e o amigo de quem sinto uma falta brutal é o gelson
nem o bar nem o amigo estão mais por aqui, mas a ideia de recheio do pastel foi ressuscitada com sucesso por mim nos eventos de frango frito que tenho feito por aí
em um deles um jovem e solícito cozinheiro responsável pelas compras do bar me perguntou se a gorgonzola poderia ser serra das antas ou se eu fazia questão da italiana giovanni colombo
por mais tentadora que seja a proposta – sempre que posso, tenho essas 2 marcas em casa, embora ultimamente o destino não se demonstre tão generoso com meu refrigerador – respondi firmemente:
– pra esse pastel é de quatá pra baixo!
me acatou o menino, mesmo que meio contrariado. no dia seguinte, ao fritar a primeira leva, dei um exemplar pra ele e expliquei que só a união estável da gorgonzola bosta com a elegância da couve é capaz de oferecer aquele salgadinho nos cantos da língua. claro que ele adorou e o salgado foi sucesso de venda
felizmente na equipe tanto de cozinha quanto de salão não tinha nenhum hipstey identitário autossustentável e entre a freguesia feliz disposta no salão não foi visto sequer um cancelaney. todo mundo estava ocupando seu tempo com diversão
além dos queijos em questão, na minha casa tem pães de fermentação natural, bebidas de excelente procedência, entre outras coisas. mas não é sobre comida e bebida que estamos falando
o ponto aqui é saber qual é o seu lugar no rolê, sem maiores chatices
não seja a pessoa sem consciência de classe que implica com o salitre da lingüiça no prato do trabalhador
nem faça o papel de marionete dos zé palestrinha naturebas inimigos do sulfito que se apresentam como uma raça superior enquanto enriquecem às custas da ignorância alheia
agora peço licença pois o papo deu fome e vou pra cozinha preparar um dog com ingredientes proibitivos e zero instagramáveis
beijo e até a semana,
j.